Por se tratar de algo pessoal, sempre relutei em tornar pública esta correspondência com Jorge Amado.
Após ler “Navegação de Cabotagem”, o livro de memórias de Jorge Amado, enviei-lhe a carta abaixo. Jorge, convalescendo de um enfarto, em Lisboa, respondeu-me carinhosamente.
Ao final da carta está o link para o fac-símile da resposta, de próprio punho, do escritor.
A carta que enviei está hoje na Casa Fundação Jorge Amado, em Salvador-BA.
A carta:
Tucuruí, 30 de junho de 1993
Caro Jorge,
Desde "Confesso que vivi", do Neruda, não tinha lido algo tão gostoso, na espécie, como, Navegação de Cabotagem.
Embora o título tenha sido feliz, por pitoresco e peculiar a ti, tua navegação, de vera, é de longo curso: os mares da vida, com certeza, ainda estão marcados, e para sempre o ficarão, pelas ondas que fizeste onde passaste.
Leio a tua releitura do que fomos, os rebentos de Lênin, e vejo que, como eu, também concluis que o sonho acabou.
A madrugada desvirginada nos mostra o que para poucos foram sonhos e flores e para muitos pesadelos e espinhos.
Guardo comigo um pedaço do muro de Berlim. Quando o vejo só consigo imaginar o pesadelo e os espinhos. Faço questão de fita-lo: é a minha penitência.
Mas, nem tudo foi em vão: os poetas foram ótimos. E havia sinceridade em suas obras.
Sabes que havia muitos deles salafrários e pérfidos, todavia suas obras foram e são mensagens profundas, belas e talentosas aos povos de todo o mundo: a poesia, a arte em sua essência, não tem fronteiras ou barreiras ideológicas.
Hoje se vê, nitidamente, o que foi criado, de médico e de monstro, em busca de um fim que ainda considero nobre.
Resolvi, à ilharga de muitos, matar o monstro: neste mundo não há mais lugar para ideologias de qualquer ordem. Afinal, todos, temos o mesmo ideal.
Devemos concluir que as ideologias acabam por matar os ideais que perseguem e os meios acabam por se transformar em fins.
Dizes que gostarias de viver para ver em que tudo isto vai dar, mas, esta estrada é infinita, meu caro: ela acaba na eternidade.
Tudo que temos a fazer é zelar para garantir a continuidade da espécie para, através dos nossos descendentes, continuar o caminho.
Esta é a verdadeira imortalidade: a crença de que daqui a bilhões de anos, quando o sol já houver engolido a Terra, nós, através dos nossos descendentes, seja lá que forma tenham então, já teremos partido em busca de outra Terra, continuando a viagem.
Que angústia! Jamais saberemos onde isto vai dar.
A propósito, tenho um amigo, que como o teu, lembra-se de todas as suas reencarnações.
É certo que já reencarnou menos que o teu, porém já teve a honra, e não duvide que ele se magoa, de ter sido, em uma dessas encarnações, ninguém menos que Dante, o da Divina Comédia.
Já esteve em outros planetas também. Agora é um engenheiro civil. Confiarias uma obra a ele?
A propósito, outra vez, alguns dias atrás, estavam eu, o Senador Jarbas Passarinho, seu sobrinho Ronaldo, que é Deputado Estadual pelo Pará e o Superintendente da CEF no Pará, Gilberto Chaves, comentando o teu Navegação de Cabotagem.
O Senador Passarinho nos colocou que em um artigo dominical em O Liberal, escreveu que resolveu usar o teu cemitério, onde enterras aqueles que por alguma razão te caíram em desapreço, para também, a teu exemplo, enterrar aqueles que para ele morreram.
Achei ótima a ideia e resolvi, a exemplo do Senador, enterrar os meus mortos no mesmo cemitério, que é o teu.
Como podes ver, a tua revelia, invadimos, com pás e enxadas, o teu campo santo. Não podes ser latifundiário de cemitério, deves dividi-lo conosco.
Fui um dos que sobrou dos sonhos e das flores. Todavia, sem querer parafrasear Sartre, penso ter chegado à idade da razão.
As passeatas, as palavras de ordem e a ditadura do proletariado, as recordo com saudade e melancolia.
Saudades dos amigos que encontrei no caminho e da fé intimorata que tínhamos nos ideais da revolução. Saudades da sensação de ser um bravo que enfrentava o sistema com o verbo.
Melancolia por saber que tudo que restou foi o fracasso. A voluptuosa melancolia de saber que a história de tudo aquilo será contada como a história dolorosa de um fracasso.
Ainda tenho os mesmos ideais. Porém não mais me mapeio na ideologia que nos jogou no abismo que cavamos com nossos próprios pés.
Na queda, me agarrei nos arbustos que crescem nas encostas do cume, escalei-o, cheguei novamente em cima: começo tudo de novo, com menos paixão e mais cautela.
Hoje, como na canção do Fagner, “só acredito no pulsar das minhas veias e aquela luz que havia em cada ponto de partida, há muito me deixou”: as ilusões se perderam nas lembranças.
Porém há sempre algo de que não nos conseguimos livrar de todo: ainda me zango quando alguém me vem falar mal do nosso velho Fidel. Falem de todos, menos dele.
Não mais concordo com ele, um velho teimoso. Mas não consigo deixar de ama-lo.
Talvez não seja amor, mas pena. Não a pena pejorativa que é irmã do sarcasmo, mas a pena solidária de vê-lo morrer junto com a Ilha, e ao fim da vida constatar, sei que ele sabe, que tudo foi em vão.
Sempre que vejo Fidel, me vem à mente o velho guerreiro Chingachcook, da tribo dos moicanos, das páginas de Fenimore Cooper.
Ao enterrar seu único filho, morto pelo chefe dos Huron, no alto de uma montanha, Chingachcook pedia ao seu deus que também o levasse, pois todos os seus já se haviam ido e nada mais ali lhe restava, pois que ele era, já na Terra, o derradeiro da tribo que outrora era numerosa e habitava aqueles vales.
Que restava para ele agora, O Último dos Moicanos?
Um abraço para ti, outro para a Zélia.
Parsifal Pontes
Para ler a resposta clique aqui.
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