30 de jun. de 2008

Prosa na roça

Azulejo português: fazendo pão em forno à lenha. O Romão é um mineiro de 78 anos em cuja casa sempre encosto quando passo por uma pequena localidade às margens da PA 150. Ele mora com a esposa, Dona Deolinda, dois anos mais velha que ele.

A prosa dos dois e tão deliciosa quanto o pão de queijo caseiro e os biscoitos de trigo e polvilho que saem de um pequeno forno de barro plantado entre umas roseiras no fundo do quintal.

O Aldemiro, vizinho do Romão, de mesma idade dele, advinha quando eu sento à mesa da Dona Deolinda e saboreio os biscoitos e um bolo de milho: ele, indefectível, sempre comparece ao singelo banquete.

Desta vez o Romão estava indignado com a Justiça do Trabalho: o seu irmão houvera sido condenado a pagar certa quantia a um capeta que reclamara contra ele.

O danado houvera chegado sem eira nem beira do Espírito Santo, fora levado à pequena propriedade do seu irmão, roçava juquira ao lado dele, comia na mesma mesa e da mesma comida, comera dos biscoitos da Dona Deolinda, convidara-lhe o irmão para batizar um filho e, ao cabo de três anos, saído da propriedade, colocara o compadre na Justiça.

- Doutor, não tem jeito de acabar com a Justiça do Trabalho? Perguntou-me o Aldemiro, indignado com o ocorrido, completando que, daqui a pouco, ninguém iria mais querer ter trabalhador.

O pior, aditou a Dona Deolinda à conversa, é este tal de trabalho escravo.

- Na cabeça de quem cabe que ainda tem escravo no Brasil!?

- O que senhor diz disto, doutor? Disparou o Romão.

Os três me olharam, esperando a resposta. O Aldemiro, de já pouca vista, apertou os olhos e aproximou o rosto, como se com a visão ouvisse.

- Olhe, amigo, o fato de ser compadre e amigo do funcionário não dá o direito de não lhe pagar os serviços prestados e de não recolher os devidos impostos, e trabalho escravo é não dar condições dignas ao trabalhador.

- Eu comecei a trabalhar quando criança, doutor. Dormi no chão, só tomava água duas vezes ao dia e estou aqui vivo, fiz minha roça, tenho meu gadinho e formei meus filhos. Fui escravo?

- Foi? Reforçou a tese o Romão.

- É que naquele tempo não havia esta cobrança que tem hoje meu amigo. Você era explorado e não sabia. Retruquei, enquanto pegava mais uma fatia do bolo de milho e derramava mais um quarto de café à xícara.

- Explorado nada, doutor. Eu aprendi foi a trabalhar e não a ser vadio e ir pedir cesta para político.

Ao completar a frase, o Aldemiro gargalhou maroto, deliciosamente acompanhado pelo Romão e Dona Deolinda.

- Agora o Aldemiro lhe pegou, doutor. Contou o tento, o Romão.

- Mas não tem quem ganhe de vocês. Em compensação eu como o biscoito e o bolo de milho mais gostoso da região. Comentei.

Dona Deolinda comenta que o Aldemiro encasquetou que morrerá daqui a três anos.

Ele balança a cabeça afirmativamente, com um ar entre grave e resignado.

- Ainda bem que será em três anos. Comentei.

Quando o Aldemiro perguntou o porquê do comentário, eu respondi que pelo menos ele ainda poderia votar em mim em 2010.

A Dona Deolinda caiu na risada. O Romão atualizou o placar.

23 de jun. de 2008

Por que não calas?

Shot[1] O ex-presidente da República Fernando Cardoso, foi de uma clareza singela e de um cinismo espantoso, ao resumir, em uma frase, o PSDB.

Em entrevista à revista Valor, na semana que passou, ao ser perguntado qual seria a bandeira do PSDB se as eleições presidenciais fossem hoje, FHC cometeu esta pérola: “Nós fazemos melhor e com menos corrupção”.

FHC, que já perdeu muitas oportunidades de ficar calado depois que se mudou do Planalto, apresentou a tese do reducionismo cínico: a eleição presidencial estaria polarizada entre dois grupos corruptos, capitaneados pelo PT e pelo PSDB.

Ao povo restaria a escolha da geni, ou seja, decidir pelo menos corrupto, que, segundo a tese bizarra do FHC, seria o PSDB.

FHC afirmou que o PSDB é composto por pessoas corruptas, inclusive ele, que é um dos cardeais do partido, porém, na gradação da delinqüência, o PSDB tem grau menor.

Digamos que fossemos quantificar a corrupção em graus, já que o FHC apenas foi substantivo: poderíamos afirmar que o PT tem, de 0 a 10, um grau 5 de corrupção e o PSDB, menos corrupto, tem grau 4,99.

FHC foi injusto com o PT e com o PSDB. Não existem partidos corruptos: há pessoas corruptas que estão em uma ou outra agremiação. A metonímia, neste caso, é um hipérbato.

Pela avaliação inversa, o PT faz mais pontos neste jogo esquisito: tem punido mais a corrupção do que o fez o PSDB, que costumava varrer a sujeira para debaixo do tapete assim que via algum sinal dela.

O PT tem, inclusive, expulsado do Éden quadros que eram substanciais ao partido e que, por qualquer razão, resolveram morder a maçã.

O PSDB, a contraponto, tentou, e algumas vezes conseguiu, deixar seus adãos comerem a maçã toda e lamber os beiços, sem sequer lhes passar um ralho: especializou-se em tergiversar o que deveria punir.

A frase de efeito do FHC mais deveria magoar que tecer loas ao seu partido que se esforça por parecer o que não é, como se tivesse moral o sujo para falar do que ele acha mal lavado.

O Brasil precisa urgentemente sair deste tipo de conjuntura gramatical: a admoestação feita a Hugo Chaves por Sua Majestade Juan Carlos, sempre também servirá a FHC.

16 de jun. de 2008

A Vale e o MST

Davi contra Golias A Bíblia conta que Golias era um gigante filisteu, com altura de 6 côvados, o que dava cerca de 3 metros. Só a cota de malha que Golias usava pesava cerca de 60 kg e a ponta metálica da sua lança pesava 7 kg.

Golias devia ser duro na queda, portanto, quando os filisteus colocaram aquela figura à frente dos seus exércitos, o medo abateu-se sobre o exército israelita.

Davi era o mais novo filho de Jessé, um modesto morador de Belém. Não tinha maiores dotes guerreiros e nunca fora de exército algum: ofereceu-se para lutar com Golias e o derrotou, tornando-se mais tarde, Rei de Israel.

A Vale encomendou uma pesquisa ao IBOPE: quis saber o que pensa a nação brasileira sobre o MST.

O MST tem sido o Davi da Vale: é claro que o movimento não terá a mesma dita do personagem bíblico, mas, as pedras que ele tem jogado na gigante do ferro, a tem incomodado sobremaneira.

Não precisaria ninguém contratar o IBOPE para saber qual a imagem que o povo do Pará tem da Vale: uma empresa arrogante que acha não ser da sua conta os problemas sociais das áreas onde ela atua.

Não é de toda justa esta imagem, mas, a empresa faz por onde assim se pense, ao tratar a questão social de forma tópica, apartada do fato de que as riquezas que ela explora são uma concessão do povo brasileiro e não uma propriedade privada.

O resultado da pesquisa contrapõe Maquiavel a Weber: o MST acha que os meios justificam os fins, a nação acha que não, mas, assevera que os fins do MST são nobres.

É uma boa hora para a Vale ler Weber e elaborar uma agenda social mais conseqüente e menos epidérmica com os bilhões que lucra: a responsabilidade social é a única forma de os trens da Vale continuarem nos trilhos sem que o MST lhe fique atazanando as locomotivas.

O MST, por seu lado, precisa repensar o método, para resguardar a simpatia da nação pelo seu objetivo.

A pesquisa mostra que para 45% dos entrevistados, a palavra que melhor descreve o MST é violência; para 27%, é coragem; e, para 24%, é a expressão reforma agrária.

Quando o IBOPE perguntou quem era a favor ou contra o MST, o resultado mostrou uma nação dividida ao meio: 46% se dizem favoráveis, e 50%, desfavoráveis.

A maioria dos entrevistados, 60%, consideram que as organizações camponesas estão se aproximando da criminalidade: estou entre estes 60%.

Adiante, a pesquisa revela que a nação também refuta a justiça com as próprias mãos quando vem do outro lado, ou seja, não vê com bons olhos a reação violenta dos que têm as suas terras invadidas: 40% acha que deve haver o diálogo e não a força.

Há os despojados: 27% respondeu que, caso tivesse uma propriedade invadida, cederia parte dela para resolver a questão. Talvez na prática a teoria deles fosse diferente...

A Vale afirma que a pesquisa foi encomendada para agregar subsídios ao seu conhecimento social e usá-los na sua agenda de relacionamento com as comunidade com as quais se relaciona no entorno dos seus projetos.

Não precisaria pesquisa para tal, apenas sensibilidade social, ou seja, com os bilhões que já lucrou, está na hora da Vale pensar em colocar no peito um coração.

9 de jun. de 2008

Amazônia once again

Boi na floresta - Tarsila do Amaral. Clique na imagem para seguir o link. Mais uma vez a revista britânica The Economist mete o dedo na pia de água benta em que, segundo o Presidente Lula, se transformou a Amazônia.

Nesta semana, a revista aposta que é “quase impossível para o governo brasileiro controlar o desmatamento e a exploração da floresta Amazônica, já que praticamente não há controle sobre a propriedade de terras na região”.

É curioso e sugestivo o título da reportagem: "Bem-vindo a nossa selva que encolhe". Eu negritei o nossa.

A The Economist, tira sarro com o Ministro Minc, chamando-o de o “hiperativo ministro do Meio Ambiente”, ao comentar-lhe o plano que prevê, a partir de julho, negar acesso a financiamentos e cortar subsídios de fazendeiros que não apresentarem documentação adequada de suas terras.

O plano do Ministro Minc vai mais além: se em quatro anos os donos das moto serras não apresentarem as suas respectivas cartas de propriedade, as terras que ocupam serão confiscadas.

Se assim fosse, e assim não será, já em julho 90% dos possuidores perderiam acesso aos financiamentos e subsídios e, dentro de quatro anos, a República lhes confiscaria a posse.

É um fato incômodo ao empresariado rural, a constatação de que grande parte de suas propriedades não resiste a uma pesquisa séria de cadeia dominial visando legalização: a Amazônia, quando começou a fase do vale tudo, era pasto farto aos grileiros de todo gênero.

Voltando a The Economist, a reportagem lavra que, devido às peculiaridades amazônicas e à carência de estrutura de fiscalização do Brasil, “na prática é quase impossível para o governo impor sua vontade nos limites de seu império, mesmo se quisesse”.

O “mesmo se quisesse”, lido com as letras que a revista quis significar, sugere que o Brasil não quer tomar as providências necessárias para por ordem na casa, preferindo dar eco sustenido à grita reacionária dos produtores rurais que montaram as suas matrizes e mentalidades na época, não tão remota, em que bancar o Nero era heroísmo e o slogan vigente era o de que a Amazônia seria desenvolvida sob as patas do boi.

Nada contra os bois, todavia, a forma como as patas pisam precisa mudar, assim como o discurso da reação: os dois estão absolutamente anacrônicos e servem mais à causa do Sul norte-americano à época da Guerra da Secessão do que ao século 21 que eles ainda não se aperceberam que chegou há sete anos.

A The Economist relata o aumento das queimadas no primeiro trimestre de 2008 e sugere que "pode haver uma ligação entre o alto preço de commodities e o desmatamento, com intervalo de cerca de um ano."

Afirma ainda que embora a soja não seja plantada na floresta, a atividade contribui com o desmatamento à medida que “empurra os criadores de gado para ela”.

É um fato que o Brasil é pressionado, de forma articulada, a dar melhor cuidado à pia de água benta.

Resmungar e ficar denunciando complôs internacionais como forma de defesa é pura ingenuidade protonacionalista: a única forma de ratificar a nossa soberania sobre a parte que nos cabe deste latifúndio é colocando ordem nele.

Se o Brasil continuar dando ouvido ao discurso atrasado de setores do agro business que acreditam piamente que são os arautos do desenvolvimento, os sinos só vão continuar dobrando para eles e, ao final, de tanto balançar, o bronze cairá na cabeça de todos nós, assim como caiu a desordem imobiliária americana nas costas de todos os sobrinhos do Tio Sam.

O motivo, tanto lá quanto cá, é um só: o modelo não tem sustentabilidade.

2 de jun. de 2008

Agências de risco

agencias[1] O título deste artigo é o mesmo que o renomado diário britânico, Financial Times, deu ao seu editorial publicado na sexta-feira, 30.05.

O diário, que está nas mesas do mundo financeiro com o café da manhã, coloca em dúvida a exatidão dos relatórios das agências de risco.

Duas das agências que o FT citou no editorial, a Fitch e a Standard & Poor's, foram exatamente as que deram o grau de investimento ao Brasil recentemente.

O FT afirma que as avaliações das agências de risco são questionáveis: "As maiores agências - Moody's, Fitch e Standard & Poor's, se enganaram redondamente na avaliação da capacidade de pagamento de dívidas no mercado de crédito imobiliário de alto risco".

As dívidas do mercado imobiliário de alto risco, são os subprimes, que estremeceram a economia dos EUA nos últimos 12 meses.

Continua o editorial do FT que “muitos chegaram a culpar as agências de classificação de risco pelo colapso no subprime, em retrospecto, pelo erro nas suas avaliações".

Em seguida, para aliviar a carga sobre as agências, o FT comete-lhes uma redenção compensatória, ao dizer que, no fato, "um monte de outras pessoas inteligentes também estava errada".

Por isto, alegando que pessoas podem errar mas empresas como as agências, que têm credibilidade coletiva e até de países, precisariam sofrer controle e monitoramento nas suas emissões.

O editorial não coloca em dúvida o grau de investimento recebido pelo Brasil: critica o fato das agências de risco não sofrerem qualquer espécie de fiscalização institucional, mas, soa estranho um editorial sobre o assunto no momento em que o Brasil recebe o santo grau das mesmas.

O editorial, aconselha um debate sobre o erro na classificação dos subprime. Neste ponto, há, nas entrelinhas, sérias suspeitas no comportamento das agências.

Diz o FT: "Primeiro houve fraude em algumas das aplicações básicas para hipoteca. As hipotecas de alto risco são uma invenção recente, então, há poucos dados sobre como elas se saem em uma economia em queda. Constatou-se que pessoas que têm hipotecas se tornaram mais dispostas a perder suas casas com a queda dos preços e deixaram de pagá-las”.

Pergunta o FT: “Como as agências de classificação não identificaram estas peculiaridades e avalizaram o subprime nestas condições?”

Sugere uma justificativa: as classificações são usadas pelos investidores, mas são pagas pelos emissores dos títulos. Por conta disso, as agências têm um incentivo financeiro para manter os emissores felizes.

Veremos como a leitura do editorial do FT poderá afetar a disposição dos investidores que estão dispostos a meter a mão no bolso em direção ao Brasil, depois do A triplo dado pelas agências: o FT e tão respeitado quanto elas.

Acredito que não haverá um aborto de intenções, mas, com certeza, mais cautela. Seria esta a intenção das mãos que digitou o editorial?