31 de mar. de 2008

Pragmatismo cínico

cinico[1] A revista VEJA da semana que passou destacou dois jornalistas para cobrir dois lados do avanço do Brasil sobre a floresta amazônica: o Pará e o Mato Grosso foram mostrados como exemplo do que não se deve fazer e como pode ser feito, respectivamente.

A matéria sobre o Pará mostra a realidade sem vestes do que a ausência do Estado no processo de exploração da Amazônia tem causado: degradação ambiental, desorganização urbana e descontrole social, cuja mistura lega aos habitantes das regiões atingidas um dos IDHs mais baixos do Brasil.

A matéria sobre o Mato Grosso ricuperizou a foto, colocando para baixo do tapete a sujeira e mostrando o chão da sala encerado: plantações simétricas de soja em um cenário europeu e cidades organizadas urbanisticamente. Pelo menos, o Mato Grosso tem Oasis no meio do deserto, se é que isto compensa.

Ficou parecendo coisa de matéria paga: o Pará não pagou e foi penalizado; Mato Grosso liquidou a fatura e foi premiado.

Ao final, a revista abriu espaço para um artigo assinado pelo economista Gustavo Ioschpe, que esgrima os mesmos argumentos, sobejamente repetidos por aqueles que acham que a agenda ambiental é uma conspiração do mundo desenvolvido para manter o Brasil na miséria.

O Brasil não está na miséria: somos a oitava economia do mundo e já geramos riquezas suficientes para consolidarmos esta posição de forma ascendente.

Não precisamos, também, cometer os mesmos erros sócio-ambientais, que os EUA cometeram no seu processo de desenvolvimento, pois o Brasil jamais terá um PIB similar para mitigar os estragos.

O problema não é a agenda ambiental que o mundo impôs a si mesmo, e não só ao Brasil. O nó górdio é a falta de competência gerencial e de investimento pesado em ciência e tecnologia, aliados a uma política mais agressiva de distribuição de renda e diminuição das desigualdades regionais.

Não é avançando de forma temerariamente insustentável sobre a floresta amazônica, ou sobre qualquer outro ecossistema nacional, que vamos conseguir romper a barreira da má gerência.

Ao contrário, o avanço indiscriminado sobre os ecossistemas, sem o respeito às leis ambientais, sejam elas jurídicas ou biológicas, causa descontrole social e, ao invés de gerar amplas oportunidades, apenas muda a miséria de lugar: levas de migrantes saem de seus estados em busca da renda prometida e descobrem, ao final, que a tal última fronteira era uma fraude.

Poucos conseguem enriquecer, e quem o faz, só contribui para aumentar a concentração de renda que envergonha o Brasil.

O custo deste desenvolvimento sem considerar a equação ambiental é muito alto para o Estado,         que tem que mitigar sozinho os fantasmas da sua própria omissão.

É insensato dar ouvidos àqueles que acham que temos que mandar bala nos nossos índios porque os EUA dizimaram os deles e hoje são o maior PIB do planeta: a civilização chegou a um estágio que não aceita mais um argumento tão pragmático a ponto de ser cínico.

24 de mar. de 2008

Tolerância zero

multa[1] Há dois anos, no aeroporto de Brasília, encontrei uma conhecida que se tinha mudado para Tabatinga-AM. Perguntei-lhe qual a principal atividade econômica do município. Ela respondeu: tráfico de cocaína nas aldeias.

Índios do Alto Solimões consomem e traficam cocaína há algum tempo. Só agora a notícia se repercute, devido à denúncia do cacique Tikuna, da aldeia Umairaçu, confirmada pelo representante da FUNAI na região.

Há uma rede de distribuição de caras-pálidas que controla a atividade e se esconde sob o manto da relativa inimputabilidade indígena, assim como da dificuldade estrutural de o Estado fiscalizar as reservas.

Já que a República finalmente resolveu ser xerife de si mesma, uma operação semelhante à Arco de Fogo deveria ser providenciada para o Alto Solimões.

Eu não me importo, e faço gosto, que os impostos que pago sejam usados para soltar os cachorros em cima de quem acha que o crime compensa.

À falta de estrutura de fiscalização contínua, urge que o Estado faça, vez e sempre, incursões de choque, nem que seja para dizer: “eu estou de olho em vocês”.

Neste caso, acho que não irão aparecer gritos contrários ao pelotão de choque, tão pouco indigenistas alegando que os índios se fazem mulas para dar leite aos curumins, e que eles precisam traficar cocaína até que uma atividade legal seja providenciada.

Também não creio que vão requerer um tempo para que cesse a atividade: algo assim como deixar os índios cheirando e traficando menos cocaína a cada dia, até que a coisa esteja resolvida, e se possa cobrar deles que não delinqüiam mais.

Sempre achei que esta coisa de transição servia para mergulhador emergir ou para quem deseja parar de fumar ou beber: o meu avô paterno dizia que transição de criminoso é cadeia.

Neste caso, como no caso da Operação Arco de Fogo, não se trata de transição alguma: tanto traficar cocaína como retirar madeira ilegalmente é crime há muito tempo e não só agora, quando a União resolveu mandar a cavalaria.

Se for assim, enquanto a polícia de trânsito não me pegar, eu posso dirigir sem a devida habilitação que não é crime.

E, ao mesmo raciocínio, quando eu for pego, vou demandar, por eqüidade, um período de transição, ou seja, que me deixem dirigir sem habilitação até eu tirar uma.

O fato é que o Brasil precisa colocar para funcionar o Estado de Direito, que é a única maneira de inaugurar um capitalismo moderno, onde a grandeza econômica esteja inextricavelmente ligada ao desenvolvimento social e a sustentabilidade ambiental.

A transição já ocorre há bastante tempo, com a União, e os estados, fazendo olhos tortos e ouvidos moucos a inúmeras irregularidades que ocorrem no território nacional.

Não se pode resolver tudo da noite para o dia e o Estado precisa se aparelhar para estar presente, mas, enquanto isto não ocorre, nada de transição à título de impunidade: tolerância zero.

17 de mar. de 2008

Homo tellus lupus

lobocord[1] É uma pena a classe política paraense fazer coro com predadores ambientais e pessoas que pisoteiam a legislação: infelizmente, o  discurso da geração de empregos está sendo pautado por um reducionismo cretino.

Estamos perdendo uma ótima oportunidade, de, em apoiando as ações do Governo Federal na questão ambiental, termos autoridade eventual para exigir deste uma política mais conseqüente, que compense o Estado dos danos que vem sofrendo por sediar projetos que têm servido exclusivamente à União.

Em todos os enclaves cometidos pela União no Pará, algum duvidoso ganho se dissolve nos impactos sociais negativos que nos tem mantido com índices de desenvolvimento humano sofríveis, em relação às riquezas exploradas.

Tudo o que se tem feito no Pará, tem sido uma poderosa privatização de lucros e socialização de prejuízos.

Nós, os políticos, com exceções sem eco, estamos cometendo um erro histórico ao apitarmos no mesmo diapasão dos delinqüentes: o Pará pode e deve prescindir de quaisquer atividades danosas ao meio ambiente e tem a obrigação constitucional de coibir atividades feitas ao arrepio da lei.

É desconcertante para algum ideal de civilização o discurso que defende o desrespeito à lei e à sustentabilidade ambiental, como forma de sustentabilidade econômica, até que questões estruturais se resolvam: este tipo de solução subverte os preceitos éticos que norteiam o comportamento social.

A efetividade desta fala transformaria a exceção legal do crime famélico ou da defesa putativa em uma conveniência econômico financeira, tirando-os da seara da necessidade eventual: isto seria uma permissividade letal para o Estado de Direito, que surgiu exatamente se contrapondo a tal realidade. 

Em artigo anterior, afirmei que não era possível, à margem da lei, arrancar do solo paraense tão formidável quantidade de floresta, sem que uma cadeia de subornos e assassinatos se perpetrasse.

Os dois jornais de maior circulação no Pará têm mostrado os fatos: denúncias de assassinatos, suborno e corrupção estão sendo postos na esteira rolante da Operação Arco de Fogo que se iniciou em Tailândia.

O maior ingrediente desta sopa é a rede de atividades ilegais que ora se tenta desmantelar. Por que alcovitá-la a qualquer pretexto?

É sabido, também, que a demora e a improvisação da Arco de Fogo está dando tempo para que aqueles que assaltam a floresta escondam o produto do saque: tem muita madeira já enterrada pelo Pará afora, à espera da bonança que se imagina virá após a procela.

O Estado não deve ceder: precisa aliar-se à União e avançar nesta e em outras frentes. O Pará precisa chegar ao seu território e fazer valer a sua autoridade sem pestanejar diante das falácias que se têm implantado por aqui.

Até agora, tudo o que tenho visto, em todos os sentidos, são condestáveis lobos se dizendo com alma de cordeiros: não poderia ser diferente, pois o sistema e o modelo que o mundo acoita como meio de crescimento econômico só gera alcatéias.

3 de mar. de 2008

Plata o plomo

Entropia de Plotkin - Laurel Latto. Clique na imagem para seguir o link. Com a produção e o comércio de cocaína, Pablo Escobar amealhou uma formidável fortuna: a Forbes, na década de 80, apontou-o como o sétimo homem mais rico do mundo.

Medellín era a cidade da Colômbia, de onde Escobar comandava o conglomerado criminoso conhecido mundialmente como Cartel de Medellín.

Escobar era admirado em Medellín, onde seus negócios geravam emprego e renda na cidade.

Para manter a atividade, ele subornava as autoridades e desprezava as instituições. Quem a ele não se submetia era eliminado.

Escobar professava um dogma inescapável conhecido como plata o plomo, prata ou chumbo, no vernáculo: ou o sujeito aceitava-lhe o dinheiro, a plata, ou seria assassinado, o chumbo.

A Colômbia, frente à constatação de que o crime tomava conta do País sob a desculpa de que a cocaína gerava renda e emprego para uma população carente e sem alternativas, resolveu agir contra esta inversão de valores.

O Estado de Direito, após algumas escaramuças com Escobar, venceu.

A cidade de Medellín não desapareceu. Tem hoje cerca de 3.2 milhões de habitantes, é um dos principais centros industriais do país e é domicílio de três universidades: descobriu que havia vida fora da ilegalidade.

Estima-se que no Rio de Janeiro, o tráfico de drogas gera cerca de 200 mil “empregos” diretos. A cadeia desta atividade ilícita gera renda para mais 300 mil pessoas: 500 mil pessoas dependem do tráfico de drogas na cidade.

Ao feitio de Escobar, os chefes do tráfico corrompem agentes do governo e desprezam as instituições. Na mesma política da plata o plomo, sustentam quem lhes dá suporte e matam quem lhes nega continência.

Em São Paulo, a organização criminosa, PCC, para praticar os seus ilícitos, “emprega” cerca de 1000 pessoas na capital.

O PCC já tem filiais em todo o Brasil e agora começa a se especializar em prestar serviços de justiça paralela: instala tribunais em favelas e bairros da periferia, onde julga as contendas dos que fazem parte da sua rede.

As “demandas judiciais” vão desde briga de vizinhos a partilha de produtos de assaltos. As penas vão de chicotadas a execução: a imprensa já começa a chamar a atividade de a sharia do PCC.

Para prestar este serviço à população, o PCC está recrutando profissionais e, por conseguinte, gerando “empregos”. 

A cadeia do crime de extração ilegal de madeira vai desde o conluio com índios, para alcançar-lhes as reservas, cruza pela cumplicidade de assentados pelo INCRA, passa pelos assentamentos ilegais, e chega ao assalto puro e simples à floresta.

O comércio ilegal de madeira no Pará, previsto como crime federal, guarda similitudes com as realidades retro mencionadas: não é possível, à margem da lei, arrancar do solo quantidade tão formidável de floresta, sem que uma cadeia de subornos e assassinatos se perpetre.

Conta-se, nas regiões onde este lastimável apocalipse ocorre, que agentes da lei são despesas na planilha de custos da atividade madeireira ilegal.

A atividade gera empregos e renda. Há uma diferença, todavia, em confronto com as outras mencionadas: o Estado contabiliza o produto gerado pela extração ilegal de madeira, pois, como a atividade tem uma face legal e outra ilegal, convivendo harmoniosamente, não raro, dentro da mesma empresa, não tem sido possível separar o joio do trigo: estima-se que o joio seja 70% por cento da carga deste estranho silo.

Tecnicamente, é como se o Rio de Janeiro cobrasse ICMS sobre a venda da cocaína e São Paulo ISS sobre as atividades do PCC.

À exemplo de outros locais onde qualquer atividade ilegal grassa como alternativa de emprego e renda, nas cidades onde a indústria madeireira se instala o que se vê, fora do emprego e à margem da renda, são espaços urbanos tão desorganizados, que fazem o velho oeste americano parecer com o idílico Shangri-La de James Hilton.

Junte-se o passivo ambiental cometido, a equação vigente de a atividade privatizar os lucros e socializar os prejuízos advindos da ilegalidade, não poderia ter outro resultado senão a Operação Arco de Fogo: que é menos uma solução para a tragédia e mais um tratamento de choque para a histeria que tomou conta do Pará, equivocadamente chamada de progresso.

É um equívoco sócio econômico justificar a ilegalidade sob qualquer pretexto. Fazer isto é esticar, ao limite da resistência, o eventual significado de os fins justificarem os meios, e romper a linha, transformando os pedaços em escombros de cinismo.

Não se deve usar o discurso anoético de que é preciso tolerar a ilegalidade enquanto o Estado não tem estrutura suficiente para prover a retidão: isto equivale a dizer que, ao arrepio da lei, devemos liberar a venda de cocaína enquanto não temos condições de proporcionar pleno emprego.

Tal solução, à titulo de eventualidade, é negar todo o arcabouço sociológico sobre o qual foi erigido o Estado de Direito.

Se tal fosse o caminho, estaríamos resolvendo, pela segunda via, o dilema legal que nos propôs Rui Barbosa: “ou instaure-se a moralidade, ou nos locupletamos todos.

Não há, portanto, neste caso do desmatamento ilegal no Brasil, um meio termo eventual e nem convém fazer coro com o discurso de que é preciso pensar nos empregos que perderemos: isto é a ilegalidade querendo persistir sob a desculpa da necessidade de si mesma.

Quem quiser cortar deve plantar. Quem quiser plantar deve buscar os meios legais para tal: a legalidade é mais difícil, pois é cheia de regras, mas, uma vez estabelecida, passa a ser o cimento que conduz ao verdadeiro desenvolvimento.

O Estado, por sua vez, deve parar de dar discurso a quem se quer aproveitar das suas lacunas estruturais.

Prover o empreendedor de meios legais não pode ser apenas eventual, com forças tarefas organizadas a cada choque anafilático.

Os órgãos que devem cuidar desta missão precisam ter o tamanho e a eficácia da medida do desafio que é legar progresso e desenvolvimento ao Pará, cumprindo as leis e servindo à agenda ambiental imposta pela consciência da nação.